Os animais de grande porte escassearam e os pequenos se tornaram dominantes, mas praticamente não houve extinções globais na Mata Atlântica, de acordo com estudos realizados a partir da base de dados Atlantic Series, cuja elaboração reuniu cerca de 400 biólogos, ecólogos e engenheiros florestais do Brasil e de outros países. Ao juntar informações de coleções biológicas de museus, artigos científicos, coletas de campo, bases on-line, dissertações de mestrado, teses de doutorado, relatórios técnicos e inventários de campo que haviam sido publicados ou não, os pesquisadores observaram também a resiliência – capacidade de adaptação – das espécies de mamíferos de grande e pequeno porte e de aves à extrema fragmentação da Mata Atlântica. A floresta que acompanha o litoral, entrando no interior de São Paulo e Minas Gerais, ocupa cerca de 15% da área estimada há cinco séculos, quando começou a colonização europeia, e se encontra dividida em centenas de pedaços, a maioria com menos de 1 quilômetro quadrado.
“Mesmo com uma redução de 85% da área da Mata Atlântica, não houve uma extinção em massa, pelo menos não ainda”, diz o biólogo Mauro Galetti, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, e um dos coordenadores do trabalho. “Houve extinções locais, como a do macaco monocarvoeiro (Brachyteles arachnoides), que ocorria em boa parte da Mata Atlântica e hoje é raríssimo, mas encontramos poucas extinções globais entre as 2 mil espécies já examinadas.” Três espécies de aves – a coruja-marrom, a caburé-de-pernambuco (Glaucidium moorerorum), o pararu (Claravis geoffroyi) e o tietê-de-coroa (Calyptura cristata) – não são avistadas há mais de 20 anos e provavelmente já desapareceram. Entre os anfíbios, a única espécie considerada extinta é a perereca Phrynomedusa fimbriata, vista apenas no alto da serra de Paranapiacaba em 1896 e descrita em 1923.
Bichos grandes mais raros
Os estudos da Atlantic Series registraram uma redução das populações de mamíferos e aves de grande porte. A onça-pintada, a queixada ou porco-do-mato (Tayassu pecari), o cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus), a harpia (Harpia harpyja), os tucanos e os gaviões florestais tornaram-se raros na Mata Atlântica, à medida que perderam território ou foram caçados. Em consequência, ressalta o ecólogo Milton Ribeiro, professor da Unesp em Rio Claro, espécies de árvores de grande porte tendem a escassear, porque dependem de animais avantajados para levar suas sementes também grandes para áreas em que possam germinar com baixa competição com outras árvores da mesma espécie.
O biólogo Fernando Lima, pesquisador da Unesp e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), com colegas de outras instituições do Brasil e da Argentina, encontrou grupos de pelo menos 50 onças-pintadas apenas em matas da serra do Mar, do alto Paraná e Paranapanema (oeste de São Paulo) e de Missiones, na Argentina. “As populações de onças não chegam a 300 indivíduos, são poucas e estão muito isoladas, o que prejudica a continuidade da espécie”, diz. Por serem escassas, as onças deixaram de exercer o papel de predador de topo da cadeia ecológica. Em consequência, os competidores de porte médio como a onça-parda e a jaguatirica (Leopardus pardalis) ganham espaço, com efeitos imprevisíveis sobre as populações das habituais presas, como capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) e porcos selvagens como catetos (Pecari tajacu) e queixadas (Tayassu pecari).
A Atlantic Series reúne informações sobre as áreas de ocorrência e a abundância de – até agora – 296 espécies de mamíferos (de grande e pequeno porte, morcegos e primatas), 832 de aves, 528 de anfíbios e 279 de borboletas, com dezenas de milhares de registros geográficos para cada grupo. Os trabalhos científicos resultantes dessa base de dados estão sendo publicados na revista científica Ecology; as listas de espécies com suas áreas de ocorrência e abundância integram os anexos de cada trabalho e um site criado pelo grupo da Unesp.
Os estudos evidenciam as espécies mais abundantes e as mais raras. No primeiro caso, entre os mamíferos de grande porte registrados por armadilhas fotográficas, o mais comum nas matas é o cachorro doméstico (Canis familiaris). No segundo caso estão, entre os macacos, o mico-leão-de-cara-preta (Leontopithecus caissara), com 34 registros, e o macaco-prego-dourado (Sapajus flavius), com 44 registros em toda a Mata Atlântica.
“A capororoca é a árvore campeã de dispersores: seus frutos alimentam 38 espécies de aves e mamíferos”
Dos trabalhos, emergem também as relações entre os animais e as plantas. Em junho de 2017, o primeiro dos seis artigos já publicados apresentou 8.320 interações, em geral ligadas à alimentação, entre 331 animais (aves, mamíferos, peixes, anfíbios e répteis) e 788 espécies de plantas. Um dos destaques foi um tipo de árvore encontrada em encostas e margens de córregos, a capororoca (Myrsine coriacea). Essa espécie tinha o maior número de dispersores: seus frutos atraem 83 espécies de animais, como gralhas, jacus, bugios, sabiás e outras aves. O macaco muriqui (Brachyteles arachnoides) e o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris) despontaram como os frugívoros com as dietas mais diversificadas, por se alimentarem dos frutos, respectivamente, de 137 e 121 espécies de plantas. “A elucidação das relações entre fauna e flora, como frugivoria, herbivoria, dispersão e polinização, é fundamental para sustentar a definição de grupos funcionais de espécies a serem usadas na restauração florestal”, comenta o biólogo Ricardo Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), que não participou desse trabalho.
O ecológo Jean Paul Metzger, professor do Instituto de Biociências da USP e um dos coautores desse trabalho, ressalta que essa base é também uma matéria-prima farta para estudos sobre variação das populações, áreas de ocorrência de espécies e interações entre comunidades de animais e plantas. “A partir da reunião desses dados, podemos testar uma série de novas hipóteses, como a relação entre as extinções da fauna e a das árvores de grande porte, levando à redução da biomassa da floresta”, sugere.
“Com os dados da Atlantic Series”, acrescenta Galetti, “tentaremos entender como as espécies sobrevivem mesmo diante de uma altíssima fragmentação”. Segundo ele, a capacidade de os animais se adaptarem a espaços menores, com luminosidade e clima diferentes dos habituais, a chamada plasticidade fenotípica e comportamental, tem sido pouco estudada. A onça-parda (Puma concolor) consegue viver em florestas, em plantações de eucalipto ou entre canaviais e alimentar-se de animais de todo tipo – de camundongos a bois. Em contrapartida, a onça-pintada (Panthera onca), embora possa viver em matas fechadas ou abertas como o Cerrado e a Caatinga, precisa de grandes espaços e de animais de grande porte como anta e porcos-do-mato que possa caçar.
Gradualmente, a Mata Atlântica se transforma em uma floresta de animais de pequeno porte, que se tornam hiperdominantes. A hiperdominância é uma situação em que poucas espécies respondem por pelo menos metade dos exemplares de determinado tipo de ser de uma área. Entre as 124 espécies de pequenos mamíferos, as predominantes são o gambá (Didelphis aurita) e o ratinho-do-arroz (Oligoryzomys nigripes). “A hiperdominância é um reflexo da fragmentação, porque as espécies desse tipo se adaptam a áreas pequenas, mas não sabemos até que ponto”, diz Galetti. “A possibilidade de ser um padrão geral de florestas tropicais abre um enorme campo de pesquisas, para entender como uma espécie se torna hiperdominante.” Um estudo da Science de 2013 indicou que, entre as cerca de 16 mil espécies de árvores da Amazônia, 227 (1,4% do total) são hiperdominantes, enquanto outras 11 mil respondem por apenas 0,1% do total.
Dois séculos de registros de aves
Coordenado pela bióloga Erica Hasui, professora da Universidade Federal de Alfenas, Minas Gerais, o artigo sobre aves, publicado em fevereiro deste ano, oferece uma visão retrospectiva mais ampla que os outros trabalhos da Atlantic Series. Ele reúne 183.814 registros de 832 espécies obtidos entre 1815 e 2017 em 4.122 localidades. Com base nessas informações, Erica e o biólogo Luis Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da USP, verificaram que a jacutinga (Aburria jacutinga), que nos anos 1800 se espalhava pelas matas de quase todo o sudeste, hoje vive apenas nos maiores fragmentos de Mata Atlântica, localizados principalmente em São Paulo.
Esse inventário contém apenas 12 registros de harpia, em grandes áreas de Mata Atlântica: o mais antigo foi em Cantagalo, no Rio de Janeiro, em 1850, e o mais recente em Iporanga, no interior de São Paulo, em 1992. Há também registros do final do século XIX de espécies hoje raras em áreas da cidade de São Paulo, como o não-pode-parar (Phylloscartes paulista), um pássaro de até 10 centímetros de comprimento, acinzentado, com peito amarelado, que foi observado nos bairros de Santo Amaro e do Ipiranga, respectivamente, em 1897 e 1899.
Até o final do ano outros levantamentos dessa série deverão ser publicados, tratando de anfíbios, borboletas, primatas, formigas, polinizadores e árvores. Diante dessa produção científica, o ecólogo finlandês Otso Ovaskainen, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, que em 2015 motivou os biólogos brasileiros a reunirem seus dados, comentou: “É fantástico que todos esses dados estejam agora acessíveis para pesquisadores que trabalham com ecologia tropical. Eles são especialmente relevantes para entender o impacto dos seres humanos sobre os ecossistemas, por meio, por exemplo, da fragmentação florestal e da defaunação”, disse. “A possibilidade de combinar essas informações de modos diferentes é animadora.”
Fonte:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/05/23/as-metamorfoses-da-mata-atlantica/